As 4 formas de consciência da loucura – Michel Foucault

A primeira forma da consciência delimita uma região da linguagem em que se defrontam loucura e razão num movimento de profunda crítica e reversibilidade; a segunda forma retoma velhos rituais de corte social, de purificação social e constrói uma série de normas passíveis de aplicação na realidade social; já a terceira forma não está no nível do conhecimento, mas sim do reconhecimento, da identificação, do sinal, que já traduz a não loucura do sujeito que identifica; por fim, a quarta forma destrói o drama sobre a loucura que poderia ser conjurado pela primeira consciência e, ao mesmo tempo, silencia toda forma de diálogo (justaposto ao silenciamento provocado pela forma consciência prática), pois a loucura já aparece como objeto inerte, desarmado e, de certa forma, débil.

Da série “Os loucos de Foucault“.

Índice

Introdução

As observações de Michel Foucault acerca das práticas sobre a loucura na Idade Clássica não revelam uma ciência fundamental, uma técnica prioritária ou um conjunto de saberes convergentes, harmônicos, que seriam responsáveis por definir coerentemente o que é o objeto “loucura”. Pelo contrário, ao constituir a formação discursiva sobre a loucura na Idade Clássica, o autor percebe diferentes maneiras, não necessariamente coesas, de se delimitar e lidar com a loucura. Maneiras pautadas numa divergência que “se inscreveria nas estruturas, só autorizando uma consciência da loucura já rompida, fragmentada desde o início num debate que não se pode concluir”[1].

A unidade do discurso da loucura, para Foucault, é pouco relacionada à coerência conceitual de um saber, à coerência retórica, à coerência teórica ou à coerência da formação dos objetos; tais coerências podem dar sentido a “esta dispersão primeira de um modo superficial”[2], mas de maneira profunda, de maneira arqueológica, “o sentido da loucura numa determinada época, inclusive na nossa, não deve ser solicitado à unidade pelo menos esboçada de um projeto, mas sim a essa presença dilacerada”[3]. Presença de uma loucura sob a forma de uma consciência, como dito, já rompida. Dilacerada.

O objetivo deste artigo é expor quatro formas irredutíveis da consciência sobre a loucura exibidas por Foucault no livro História da Loucura na Idade Clássica.


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Crítica

Uma consciência crítica da loucura, que a reconhece e a designa sobre um fundo de coisa razoável, refletida, moralmente sábia; consciência que se compromete inteiramente em seu julgamento, antes mesmo da elaboração de seus conceitos; consciência que não define, que denuncia”[4]: trata-se da consciência segura de que não é louca e, em sua segurança, compreende que justamente por ser o que é, não se é louca. Entretanto, justamente por estar num lado da oposição, o jogo de diferença entre loucura e não-loucura se coloca como possibilidade sempre presente de reversão. É possível tornar-se louco e, pior, é possível ser louco sem perceber, pois “não existe para a loucura a certeza de estar louca”[5].

A razão é firmada como referência, porém, logo é abolida e substituída pela ironia de seu oposto: a própria consciência da loucura pode ser entendida como estratagema da loucura. Trata-se, portanto, de uma consciência baseada na diferença e na constante possibilidade de reversão entre os polos, o que infere uma certa sapiência à loucura. “Consciência crítica que finge levar o rigor até o ponto extremo de fazer-se crítica radical de si mesma, e até a arriscar-se no absoluto de um combate duvidoso, mas que ela evita secreta e antecipadamente ao se reconhecer como razão apenas pelo fato de aceitar o risco”[6]. A razão ganha por ser o resultado da prática cartesiana do questionamento sobre si.

Prática

Uma consciência prática da loucura: aqui o descompromisso não é nem virtualidade nem virtuosidade da dialética. Ele se impõe enquanto realidade concreta porque é dado na existência e nas normas de um grupo; mais ainda, impõe-se como uma escolha, escolha inevitável, pois é necessário estar deste lado ou do outro, no grupo ou fora do grupo”[7]. Uma consciência normativa, sociológica, baseada e influente na vida cotidiana, ao mesmo tempo, a escolha que ela exige é falsa, pois somente aqueles que estão dentro do grupo podem decidir não só quem está dentro, mas quem está fora por sua própria decisão. É necessário relembrar que a loucura é entendida como recusa ética fundamental.

A consciência, apenas crítica, de que eles se desviaram, apóia-se sobre a consciência de que escolheram uma outra vida, e com isso ela se justifica – ao mesmo tempo se esclarece e torna-se mais sombria – num dogmatismo imediato.[8]

Distinta da consciência crítica da loucura, ela não é compromissada com a diferença e, ao mesmo tempo, com a totalidade entre loucura e razão, o que as tornam substituíveis, o que torna relevante a questão sobre a loucura de si; esta é a consciência da diferença entre loucura e razão. Esta diferença, enquanto um corte, nasce a partir do grupo entendido como totalidade autorizada a definir seu exterior, a definir as normas da razão.

Trata-se de uma consciência que promove a solidariedade do grupo portador das normas e, ao mesmo tempo, a divisão entre o grupo portador e o grupo alvo das sanções normativas. A consequência é um diálogo pobre entre loucura e razão que leva o primeiro termo ao silêncio. É necessário silenciar a loucura, pois ela não tem nada a dizer. Entretanto, mesmo sendo deficiente em sua linguagem própria, ainda há algo a ser conhecido, a ser entendido e interpretado através da razão, pois a loucura a ser conhecida é uma loucura desarmada, no máximo pontualmente perigosa.

Esta forma de consciência é ao mesmo tempo a mais e a menos histórica; ela se apresenta a todo momento como uma reação imediata de defesa, mas esta defesa não faz mais que reativar todas as velhas obsessões do horror. O asilo moderno, se pelo menos pensarmos na consciência obscura que o justifica e que fundamenta sua necessidade, não está isento da herança dos leprosários.[9]

A consciência prática se define, então, pelo corte pressuposto entre loucos e razoáveis e pela divisão social que resulta disso.

Enunciativa

Uma consciência enunciativa da loucura, que possibilita dizer de pronto, sem nenhuma recorrência ao saber: ‘Esse aí é um louco'”, ou seja, como se a loucura fosse um sinal. Sua identificação é o ponto da consciência enunciativa, não exatamente sua avaliação, sendo assim, a loucura não é nem benção nem maldição para o olhar imediato da diferença entre a loucura e o resto do mundo.

A consciência não está mais, aqui, ao nível dos valores, dos perigos e dos riscos; está ao nível do ser, não passando de um conhecimento monossilábico reduzido à constatação. Num certo sentido, é a mais serena de todas as consciências da loucura, pois em suma não passa de simples apreensão perceptiva.[10]

Isto, na medida em que não passa pelo saber, na medida em que fica num nível de sinalização. Descrevo desta maneira com apoio de Mikhail Bakhtin, pois

O signo é descodificado; só o sinal é identificado. O sinal é uma entidade de conteúdo imutável; ele não pode substituir, nem refletir, nem refratar nada; constitui apenas um instrumento técnico para designar este ou aquele objeto (preciso e imutável) ou este ou aquele acontecimento (igualmente preciso e imutável).[11]

Mas este movimento só acontece quando a consciência que designa a loucura já se constitui como oposta à loucura. Trata-se de uma consciência sobre a loucura na medida em que não é uma consciência louca. “Por mais livre de preconceitos que possa estar, por mais distanciada de todas as formas de coação e de repressão, ela é sempre uma certa maneira de já ter dominado a loucura”[12]. A consciência enunciativa se apega à história para entender que a loucura é anterior aos sujeitos concretos não-loucos, portanto, por comparação, é possível ter plena segurança em não estar louco justamente por ser capaz de apontar a loucura imediatamente.

Analítica

Uma consciência analítica da loucura, consciência isolada de suas formas, de seus fenômenos, de seus modos de aparecimento […] A loucura é, aí, apenas a totalidade pelo menos virtual de seus fenômenos; não comporta mais nenhum perigo, não implica mais nenhuma divisão; não pressupõe mesmo nenhum outro recuo além do existente em qualquer outro objeto do conhecimento. É esta forma de consciência que lança as bases de um saber objetivo da loucura”[13]: esta consciência retira a loucura do campo essencial de obscuridade a que ela sempre esteve ligada e a coloca como elemento a ser conhecido. Evidentemente, tal conhecimento só pode se dar por um sujeito razoável que consiga identificar a loucura rapidamente e, claro, a perceba como não-ser. A tranquilidade da consciência analítica pressupõe uma distância infinita entre o sujeito razoável e o louco.

É a consciência analítica, com sua arrogância objetiva, que permite a avaliação da loucura, mais tarde, unicamente como doença mental. Objeto já dominado, desrazão já controlada.

Considerações finais

As formas de consciência acima apresentadas são solidárias e, ao mesmo tempo, independentes umas das outras. Delimitam diferentes estratégias discursivas perante o objeto central da loucura e traduzem a própria dispersão em sua constituição. São independentes por moverem-se a partir de suas regras, mas solidárias na medida em que

não há um saber da loucura, por mais objetivo que pretenda ser, por mais baseado que afirme estar nas formas do conhecimento científico e apenas nelas, que não pressuponha, apesar de tudo, o movimento anterior de um debate crítico onde a razão se mede com a loucura.[14]

Cada forma de consciência da loucura indica outras que lhe serão adjacentes, que formarão todo o conjunto de enunciados colaterais presentes na prática da função enunciativa.

Desta forma, compreende-se que[15]: a primeira forma da consciência delimita uma região da linguagem em que se defrontam loucura e razão num movimento de profunda crítica e reversibilidade; a segunda forma retoma velhos rituais de corte social, de purificação social e constrói uma série de normas passíveis de aplicação na realidade social; já a terceira forma não está no nível do conhecimento, mas sim do reconhecimento, da identificação, do sinal, que já traduz a não loucura do sujeito que identifica; por fim, a quarta forma destrói o drama sobre a loucura que poderia ser conjurado pela primeira consciência e, ao mesmo tempo, silencia toda forma de diálogo (justaposto ao silenciamento provocado pela forma consciência prática), pois a loucura já aparece como objeto inerte, desarmado e, de certa forma, débil.

Referências

[1] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica. São Paulo: Perspectiva, 9ª edição, 2012, p. 166.

[2] Idem.

[3] Idem.

[4] Idem.

[5] Idem.

[6] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 167.

[7] Idem.

[8] Idem.

[9] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 168.

[10] Idem.

[11] BAKHTIN, Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª Edição, HUCITEC: São Paulo, 2006, p. 86.

[12] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 168-169.

[13] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 169.

[14] Idem.

[15] FOUCAULT, Michel. História da Loucura na Idade Clássica… p. 170.

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